Lula e o obscurantismo

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

A determinação de Lula ao silêncio relativamente ao golpe de 1964 é inadmissível; contraria sua própria história e confronta as forças que garantiram sua eleição

Nações não resultam de processos “naturais”: são comunidades imaginadas e construídas para legitimar o Estado moderno. Quem estudou a história moderna atento aos processos culturais sabe disso. A construção das nações é trabalho delicadíssimo e perigoso: produz o sentimento coletivo mais potente e mortífero já conhecido.

Não há carnificina moderna que não seja conduzida em nome da defesa dessa entidade sacrossanta, também chamada “pátria”. Grandes assassinos do século XIX agiram em nome de Deus, da pátria e da família. Na atualidade, o avanço do ultraconservadorismo ocorre por meio da agitação enviesada dessas bandeiras. Não há regime político autoritário que dispense o uso de sentimentos nobres amesquinhados por obscurantistas.

Um mero chefe de Estado não tem autoridade moral para pedir a vida de seus cidadãos. Um “pai da pátria” ou um “chefe da nação”, tem. Em nome dessa comunidade sacrossanta, multidões matam e morrem convictas de que ascenderão ao panteão máximo da glória.

Jair Bolsonaro prometeu metralhar reformistas sociais em nome de Deus, da pátria e da família. Aprendeu, no Exército, que “o mais alto valor de uma nação / vibra n´alma do soldado, ruge n´alma do canhão” (Hino da Artilharia, calcado em música do exército alemão, mostrou-me certa vez um amigo atento).

(Lembrete aos que defendem a reforma do ensino militar como forma adequada de “democratizar” o Exército: é o cancioneiro, mais que preleções em sala de aula, que deixa os militares convictos da condição de criadores da nação e responsáveis por seu destino).

A construção desta comunidade, a nação, é permanente. O mais reconhecido teórico da construção da nação no século XIX, Ernest Renan, cunhou uma frase que seria repetida insistentemente: a nação é uma opção cotidiana. Não há tréguas na disputa pela nação que almejamos.

A construção desta comunidade representa uma disputa constante de interesses sociais divergentes. Neste processo, é fundamental “esquecer” determinados fatos e exaltar outros, assinalou Ernest Renan, autor usado por fascistas italianos.

Eric Hobsbawm, por sua vez, revelou que a invenção de tradições joga peso fundamental na criação das nacionalidades.

Hoje se fala em “disputa de narrativas”, mas a luta política sempre foi orientada por interpretações divergentes acerca de experiências vividas. Aos “de baixo” cumpre rechaçar cartilhas dos que lhes exploram.

Lula determinou silêncio relativamente ao golpe de 1964.

O militar brasileiro acredita que, nesta ocasião, salvou a pátria. Não se envergonha do fato de tal “salvação” ter sido viabilizada pela força militar do Pentágono. O presidente dos Estados Unidos deu a ordem para deter o reformismo protagonizado por João Goulart, um governante legalmente estabelecido.

A determinação de Lula é inadmissível. Contraria sua própria história e confronta as forças que garantiram sua eleição. É uma cusparada na cara de Jango. Nega o discurso que legitimou a Constituição de 1988, quando Ulysses Guimarães crivou que a ditadura merecia ódio e nojo dos brasileiros.

A determinação de Lula ajuda a legitimar a traição aos interesses populares ocorrida em 1964. Joga na lata do lixo o empenho de todos os democratas que se engajaram no combate ao regime assassino.

Espezinha os que deram suas vidas pela liberdade e pelas reformas sociais. A lista é longa, desde Tiradentes até Manoel Fiel Filho. Passa por Bárbara de Alencar, Bergson Gurjão e Helenira Resende.

Conscientemente ou não, Lula endossou a percepção histórica do quartel, que se vê a encarnação de nobres propósitos. Por que Lula tomou tal atitude? A Constituição determina que assuma o comando das corporações. Lula falou como subalterno, não como comandante. Não lhe cabe o posto de porta-voz de fileiras.

Em nome da preservação da democracia não faz sentido endossar os que se empenham em destruí-la. Lula falou como obscurantista e deve desculpas aos brasileiros.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura). [https://amzn.to/3URM7ai]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Mariarosaria Fabris Ronaldo Tadeu de Souza Fernando Nogueira da Costa Lincoln Secco Claudio Katz Heraldo Campos Jean Pierre Chauvin Ricardo Musse Paulo Sérgio Pinheiro Daniel Costa Julian Rodrigues Alexandre Aragão de Albuquerque Igor Felippe Santos Rodrigo de Faria Yuri Martins-Fontes Mário Maestri Eugênio Trivinho Eduardo Borges Leonardo Boff Marcus Ianoni Luiz Roberto Alves Lorenzo Vitral Rubens Pinto Lyra Eleutério F. S. Prado Luiz Werneck Vianna Osvaldo Coggiola Tadeu Valadares André Singer José Micaelson Lacerda Morais Marcos Silva João Sette Whitaker Ferreira Leda Maria Paulani João Lanari Bo Bernardo Ricupero Leonardo Avritzer Carla Teixeira Ladislau Dowbor Alexandre Juliete Rosa Gilberto Lopes Andrés del Río João Carlos Loebens Gabriel Cohn Antonino Infranca Andrew Korybko João Feres Júnior Elias Jabbour Leonardo Sacramento Anselm Jappe Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luis Felipe Miguel Ronald León Núñez Henry Burnett Ricardo Antunes Thomas Piketty Caio Bugiato João Adolfo Hansen Maria Rita Kehl Michael Roberts Slavoj Žižek Henri Acselrad Flávio R. Kothe Paulo Fernandes Silveira Francisco Fernandes Ladeira Luiz Bernardo Pericás João Carlos Salles Francisco Pereira de Farias Berenice Bento Paulo Martins Érico Andrade Daniel Brazil Alysson Leandro Mascaro Luiz Eduardo Soares Benicio Viero Schmidt Francisco de Oliveira Barros Júnior Alexandre de Lima Castro Tranjan Kátia Gerab Baggio Ricardo Abramovay Marilena Chauí Tales Ab'Sáber Priscila Figueiredo Eugênio Bucci Remy José Fontana Samuel Kilsztajn Atilio A. Boron Tarso Genro Otaviano Helene Vanderlei Tenório Celso Frederico Marcelo Módolo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco José Costa Júnior Luiz Marques Valerio Arcary Carlos Tautz Matheus Silveira de Souza Denilson Cordeiro José Machado Moita Neto José Dirceu Boaventura de Sousa Santos Chico Whitaker José Raimundo Trindade Lucas Fiaschetti Estevez Liszt Vieira Vladimir Safatle Chico Alencar Daniel Afonso da Silva Sandra Bitencourt Marjorie C. Marona Bento Prado Jr. Antônio Sales Rios Neto Ronald Rocha Ricardo Fabbrini Luiz Renato Martins Eleonora Albano André Márcio Neves Soares Paulo Nogueira Batista Jr Rafael R. Ioris José Geraldo Couto Milton Pinheiro Juarez Guimarães João Paulo Ayub Fonseca Flávio Aguiar Luciano Nascimento Jorge Branco Bruno Machado Michael Löwy Luís Fernando Vitagliano Armando Boito Marcos Aurélio da Silva Fernão Pessoa Ramos Alexandre de Freitas Barbosa Fábio Konder Comparato Gilberto Maringoni Renato Dagnino Celso Favaretto Walnice Nogueira Galvão Salem Nasser Dennis Oliveira Annateresa Fabris Sergio Amadeu da Silveira Manuel Domingos Neto Ari Marcelo Solon Dênis de Moraes Jean Marc Von Der Weid Everaldo de Oliveira Andrade Vinício Carrilho Martinez Marilia Pacheco Fiorillo Airton Paschoa Paulo Capel Narvai José Luís Fiori Plínio de Arruda Sampaio Jr. Eliziário Andrade Manchetômetro Antonio Martins Marcelo Guimarães Lima Michel Goulart da Silva Gerson Almeida Afrânio Catani Luiz Carlos Bresser-Pereira Jorge Luiz Souto Maior

NOVAS PUBLICAÇÕES